quinta-feira, 27 de novembro de 2014

O BOB ESPONJA DO AMOR E AS NOSSAS DIVINDADES

Ainda hoje, tenho o hábito de bradar a minha má sorte para quem quiser ouvir. “Sou zicado”, vivo dizendo, sem pudor algum. Tudo bem que Murphy parece insistir em fazer valer a sua sina em minha humilde existência vez por outra. Botar o pé na rua e começar a chover, ver o ônibus passar logo antes de chegar ao ponto, ser o único da turma presenteado com uma lagarta de alface no sanduiche, dentre outras coisas, às vezes me faz crer que esse cretino tem um carinho especial por mim.
“Carinho especial por mim“. O que me leva a crer que mereço tamanha atenção, especialmente de uma figura tão importante? Não é qualquer ser vil que me pune com suas leis, trata-se praticamente de uma entidade universal, um ser dotado de poder e de magia, por mais nefasto que seja.
Porque estamos sempre pensando, e até mesmo sentindo os eventos da vida dessa forma? Por qual motivo nossa percepção insiste em direcionar tudo diretamente para o centro dos nossos umbigos? “Eu, eu, eu!”. Soa tão desesperador... Como vem dizendo um iluminado em sua canção: “Rir é bom, mas rir de tudo é desespero”. Talvez um dia eu entenda melhor dessas coisas, mas por ora me abstenho em desvendar mais um mistério. O que me importa é que não sou tão especial assim. Não posso ser. Duvido que Murphy ou qualquer outra divindade venha gastando seu tempo olhando para mim com tamanha atenção. Eu, eu, eu...
Também é incrível como temos o prazer de voltar nossos olhos para as desventuras. O azar, percebo, é encontrado em qualquer esquina, em qualquer situação digna de incômodo à nossa supervalorizada existência, afinal, porque justo eu deveria estar sendo tão perturbado por uma infinidade – e infimidade - de desprazeres? Só pode ser um plano macabro para tornar a minha vida muito mais difícil e desafiadora.
Ah, mas a sorte, não! Ela é discreta e sublime. Exige uma preparação de semideus para ser desvendada. É necessário realizar o árduo trabalho de suspender parte das nossas queixas e daquele ruído interno que nos direciona, dia após dia, ao descontentamento.
Me parece, sem muitas dúvidas, um trabalho para semideuses.
Contudo, confesso-me tremendamente errado em todas as vezes que exibo meus infortúnios. Tenho, na verdade, muita sorte. Sorte que pode se revelar, por exemplo, na simples figura de um amigo. Um brother que levarei pra vida toda. Não digo “melhor amigo”, pois tal expressão carrega certa perversão ao qualificar nossos bons companheiros de forma tão emblemática.
Ilustro minha sorte admirando e contrastando nossas notáveis diferenças nos mais variados aspectos, todavia, preciso me ater em apenas alguns pontos. Contrario a mim, que passei boa parte da vida levantando a bandeira do ceticismo, este amigo é supersticioso. Do tipo, realmente muito supersticioso, pelo menos sob meu olhar.
Lembro-me de quando éramos jovens (como dói falar isso!), vivíamos jogando Winning Elleven no nosso saudoso Playstation 1. Meu Deus, qual leitor aqui pegou desde o início a época deste vídeo game? Torço para que sejam muitos. Havia uma puta rivalidade entre nós, a ponto de certa vez quase sairmos no tapa. Todo jogo era acirrado, dificilmente alguém ganhava por mais de um gol de diferença e as melhores de 5 sempre terminavam 3x2. Era a técnica da minha Inglaterra de Beckham, Owen e Scholes contra a força da sua Argentina de Batistuta, Verón e Claudio Lopez. Ainda hoje guardo com carinho uma camisa da seleção inglesa em memória a essa época. Era realmente fantástico.
Em uma de nossas jogatinas, eu tomei uma sonora goleada de 10x0. Não, eu não zoei no jogo, não fiz gracinha. Joguei sério do início ao fim. Tomei uma nabada pra não esquecer mais. E não esqueci. Fui embora cabisbaixo e remoí aquilo durante um bom tempo.
Meses depois, mais uma vez estávamos lá, mergulhados no nosso clássico. Estava rolando uma festinha na casa dele, comes e bebes liberados e o Winning Elleven comendo solto. Aquele cenário, para nós, era uma espécie de paraíso. Nesse dia, comecei abrindo o placar. 1. 2. 3. 4 a 0! Estava tudo lindo, quando ele começou a botar a culpa em seu tio. “Tio Zózó”, jamais o esquecerei.
O pior é que o coitado do Zózó realmente passava na porta do quarto dele toda vez que eu fazia gol, e não tardava a levar toda a culpa. “Zózó passa na porta e eu tomo gol, véi! Tomar no cu!”. E assim seguiu, até eu balançar as redes 11 vezes. 11 a 0. E não, ele também não entregou o jogo, não fez gracinha. Pelo contrário, só esbravejou o tempo todo. O destino de tamanha ira? Tio Zózó.
Não era só desculpa e muito menos brincadeira por parte do meu grande amigo, ele realmente acreditava com uma convicção inabalável que sofreu a maioria dos gols por causa das aparições do seu tio. Depois disso, fechou a porta e só continuo a jogar com ela fechada. E o pior é que os resultados voltaram ao normal depois disso, eternizando sua crença de que o culpado de tudo era o pobre Zózó. Pra mim, o que importa é que devolvi a épica talascada, e com acréscimo!
Ao longo dos anos da nossa amizade, várias foram as expressões da sua superstição. A mais marcante delas aconteceu quando fui presenteado por ele com um Bob Esponja de pelúcia. Não me lembro exatamente como ele se apossou dessa criatura, mas ao oferece-la a mim, demonstrou plena convicção de que ele era imbuído do poder de “trazer sorte com as meninas”. Bastava coloca-lo em algum lugar visível do meu quarto que a coisa aconteceria. Dizia que já tinha funcionado com ele, e que agora era a minha vez de usufruir do feitiço. A título de curiosidade, hoje ele se encontra noivo de uma bela garota e tudo vai bem entre eles.
Parece ter funcionado.
Ainda me pergunto o que o motivou a conceder-me seu totem. Talvez por desapego e por não desejar ter tudo apenas para si. Ou por ter percebido que a minha fase não era das melhores, que a maré não estava para peixes. Acho que as duas coisas e talvez algumas mais. Aceitei não apenas o presente, mas abracei também todas as suas intenções, tomando emprestado seu forte valor supersticioso. Fiz exatamente o que me foi recomendado, e até hoje o Bob Esponja reside no meu quarto, sobre alguns livros.
Se alguém ficou curioso para saber se funcionou ou não, vai ter que esperar mais alguns parágrafos. Antes, chamo a atenção para a forma com que alguns de nós tratamos a questão das crenças e superstições.
Passei parte da vida discutindo comigo mesmo e com os outros sobre a minha orientação religiosa, ou não religiosa, sempre ávido em me posicionar e em reconhecer minha falta de crenças em algum desses chavões que fizesse sentido, especialmente se pudesse quebrar com o convencionalismo e conservadorismo.
Hoje, alguns anos adiante na estrada da vida, pouca atenção dou ao caso. Não que as minhas criticas tenham me abandonado ou que abdiquei de me posicionar, não se trata disso. Sinceramente, pouco me importa se sou isso ou aquilo. Tenho as minhas convicções, compreendo que são as minhas e de mais ninguém e por ora isso basta. E compreendo ainda que cada um tem as suas próprias e que isso é o bastante para ambos.
Hoje – diferentemente de outrora – sinto-me grato ao ouvir expressões como “Deus te abençoe” e “Que Jesus te perdoe”, esta última, quando cometo alguma infâmia. Sim, desejo que Deus me abençoe, não por adorar tal divindade, mas por compreender – quando isso de fato acontece – que o outro quer que eu receba uma benção. Também quero receber o perdão de Jesus, caso ele realmente detenha tamanho poder e, especialmente, se eu tiver agido tão mal assim. Que todos os Orixás me concedam boas energias e que a sabedoria dos Pretos Velhos possam ser passadas para mim ao longo dos anos. Que gradativamente nos desarmemos das nossas convicções tão fúteis, pelo menos frágeis quando colocadas diante de intenções tão nobres. Simples, puras e louváveis intenções, ainda que despidas de qualquer flâmula.
E que o Bob Esponja seja capaz de me trazer sucesso com as garotas.
O Bob é realmente mais sagaz do que julguei a principio. Vencendo minha resistência, sua magia revelou-se real e trouxe algumas agradáveis surpresas. É verdade que o fato narrado já aconteceu há mais de ano, logo, não relato nenhuma experiência recente. Na época, entretanto, algumas estranhas coincidências aconteceram. Não me tornei moreno alto, bonito e sensual e muito menos saí fazendo sucesso por ai, não foi nada disso. Sem entrar em muitos detalhes, aconteceram algumas situações, até então, pouco prováveis. Mas que só foram possíveis mediante a força do Bob.
Talvez, ao ser presentado com a dádiva contida na pelúcia de um personagem de desenho animado, uma parte pouco acessível do meu ser fora ativada com o intuito de fazer com que as coisas acontecessem, mas prefiro crer em seu poder. Bob Esponja do Amor é como o chamo.
Hoje, repousando tranquilo em meu quarto, posso dizer que ele cumpriu sua missão. Transportou os votos de sucesso que fizera um grande amigo. Um ato nobre, que tem me servido mais para repensar a forma com que lido com minhas crenças, meus valores, meu ceticismo e especialmente minha abertura às outras pessoas do que para cumprir sua missão principal.
Quero seguir o exemplo que me foi dado e continuar a corrente do Bob Esponja do Amor. Seu milagre já foi operado em mim e agora é hora de fazer o mesmo por outra pessoa. Que carregue bons ares – quiçá feromônios – a outrem e que isso se repita muitas vezes mais.
Meu companheiro Bob Esponja está com os dias contados aqui em casa, no meu quarto. Mas o aprendizado que pude obter com ele e com um bom amigo, perdura. Neste momento, sinto-me envergonhado de ter iniciado este texto exibindo minha pequena quota de azar.
Seja pelos signos, pela cruz, pelo cachimbo ou pelo Bob Esponja do Amor, torço para que um dia sejamos capazes de compartilhar com harmonia e alegria as nossas crenças e possamos brindar a beleza que existe no fato de sermos mais de sete bilhões de pessoas tão diferentes.

domingo, 9 de novembro de 2014

EU NÃO SOU O ROCKY BALBOA (E ESSE NÃO É UM CAPÍTULO DO LIVRO)

É fim de tarde de uma sexta-feira nem tão quente assim. Já tivemos piores. Estou prestes a adentrar um shopping center enquanto o tímido sol sobre a montanha se prepara para sair de cena. Neste momento a maioria das pessoas já sentem os ânimos pululando e suas preocupações giram em torno de decidir qual será o lugar e a companhia da noite. Eu, não. Na verdade eu nem deveria estar aqui, não por ter aversão a esse tipo de lugar como ousava afirmar quando era mais novo. A idade, ainda que não muito tardia, traz consigo alguma indiferença.
Ao sair do trabalho, fui desviado da rota de todos os dias por qualquer motivo mundano que a menção não vale a pena. Tomei outro caminho, contemplei outras paisagens urbanas e desemboquei aqui, neste grande templo de compras e vendas, de prazeres e sacrifícios. Sinto-me animado, pois não me lembro qual foi a ultima vez que fizera um programa como este, andando por ai descompromissadamente, acompanhado apenas dos meus pensamentos. De alguma forma, me sinto... Livre. E leve. Entro sem saber exatamente o que faria ali. A única certeza é de que acabaria na praça de alimentação. Contudo, observo as vitrines com alguma atenção e visito duas ou três lojas, na esperança de que alguma coisa chamaria a minha atenção e conquistaria o meu limitado capital. Poderia, então, sentir-me parte daquele grupo, daquelas pessoas.
Tudo em vão.
Invariavelmente sigo para a praça de alimentação, e, sem muita dificuldade, escolho o lugar para saciar minha fome: Burger King. Aguardo a fila com paciência sem me atentar muito às pessoas ao meu redor até que, enquanto espero pelo meu pedido, vejo duas jovens garotas – ou nem tão jovens assim – pedindo outro copo descartável para o atendente. Pedido negado. Só então me dou conta de que o refrigerante é liberado. Open bar. Como foram espertas! Compraram apenas um combo e pagaram mais barato no outro sanduiche. Já que era refil de refrigerante, beberiam juntas pelo preço de um só. Pelo menos conseguiram um canudinho adicional e a estratégia funcionaria.
Senti-me tacanho diante de tamanha perspicácia daquelas garotas. Porque eu nunca havia pensado nisso? Provavelmente minha mente caótica esteve ocupada com outros detalhes de menor importância prática, enquanto eu deixava escapar aquela oportunidade de levar vantagem. De enganar toda uma franquia. Eu poderia ter trapaceado o Rei dos Hambúrgueres, mas não estive atento. Pergunto-me qual foi a ultima vez que me senti esperto, que havia levado alguma vantagem apenas por ser inventivo. Foi difícil me lembrar.
Calmamente chego à minha mesa de dois lugares para finalmente comer. Observo as garotas compartilhando o mesmo copo de refrigerante, porém com dois canudinhos diferentes. Sinto certa alegria e satisfação ao assistir aquela cena. Enquanto desfruto do sabor do sanduiche e das batatas, observo mais atentamente o lugar. Quase todos estão acompanhados dos pares. Dos seus pares. Apegados a essa mania de contabilizar o outro como posse ou qualquer coisa do tipo. Divago – como de costume – sobre este sintoma. O que leva as pessoas a chamarem seus companheiros de meu namorado ou minha esposa? O que de fato as leva a acreditar que são suas, quando na verdade por um simples capricho elas podem desistir da relação e deixar o outro a ver navios?
No fundo, não me encontro em condições de criticar as pessoas, quando eu não faço muito diferente. Naquele momento, sou invadido pela lembrança da minha garota, aquela que há anos me acompanha, todos os dias, sem cessar. Pelo menos em pensamento. Suponho onde ela estaria agora e o que estaria fazendo, sem grandes dificuldades. Há longos anos conheço a sua rotina, mais do que gostaria.
Percebo – enganosamente ou não – que não é raro sujeitarmos nossa felicidade, ou pelo menos a nossa satisfação e segurança à outra pessoa. Desde que sejamos um do outro, está tudo bem. Noutros tempos, afirmaria com convicção que sou autossuficiente e estou imune a este perigo. No entanto, a vida vem me mostrando, com um sucessivos socos bem no centro da face, que as coisas não são bem assim. Hoje seguindo só adiante em uma estrada meio soturna, não sustento tamanha certeza. Alguns nocautes no ringue da vida me fizeram perder perder um pouco da coragem de outrora, aquela doce coragem jovial. Não mais sou tão destemido assim. Eu não sou o Rocky Balboa¹.
Decidi me render.
Volto a assistir às duas garotas vencedoras. Desejei uma companhia. Desejei poder mostrar ao meu par que sou esperto, provar que posso vencer o Rei daquela província ou franquia. Novamente a minha garota me vem à mente, acompanhado da vontade de ter sua companhia, pelo menos até terminar de comer. Novamente, em vão. Ela se foi. Por algum capricho, ou não, eu não poderia continuar chamando-a de "minha". Porque eu insistia em chama-la dessa forma? Talvez porque eu ainda sinto que seja. Contudo, ela se foi, decidiu partir há alguns anos e eu insisto em agir dessa forma. Minha. No fim das contas, deliberadamente me rendi - e tenho sido vencido - pelo hábito. Afinal, eu não sou o Rocky Balboa.
Mas não há grande desagrado em estar só. Na verdade, estou mais leve assim. Dou-me conta que ali, naquela praça de alimentação, quase de frente um para o outro, existem dois concorrentes do Rei dos Hambúrgueres. Suas placas, cartazes e cardápios são adornados por uma profusão de cores e luzes, sem contar as fotos de pessoas felizes e sorridentes capazes de nos fazer acreditar que estamos engolindo tal felicidade.
Volto a apreciar o gosto daquela guloseima bem na minha frente. Realmente, parece mágica, uma mágica proferida por aqueles garotos de boné atrás do balcão que provavelmente não tiveram muita escolha senão trabalhar para contribuir com a decadência da nossa saúde. Tento desligar meus outros sentidos e me atentar apenas ao paladar. A sensação é quase divina. Posso sentir o gosto da carne, do bacon, do molho, da gordura. Tudo parece ser cuidadosamente estudado e calculado, para que a soma das partes seja maior que o todo.
Naquele momento, estou convencido de ter comprado toda a felicidade daquelas propagandas. O preço? Não é apenas o dinheiro gasto ali, que por si só não é tão pouco assim. Pago também com parte do meu vigor. Ele não me faz tanta falta agora, contudo, poderá fazer em algum momento. Parece um contrato: a cada mordida, uma parte da minha vida – mesmo que ínfima – fica por ali. Parece valer a pena.
Inesperadamente, o alarme de alguma daquelas franquias começa a tocar. Um som alto, agudo e repetitivo. Totalmente irritante. Certamente alguém está tomando esporro do seu superior naquele momento. – sempre tem alguém pior que a gente – penso, sem hesitar. Me sinto um pouco melhor, aquela perturbação não é grande coisa assim, afinal, é sexta-feira. Amanhã sequer preciso acordar cedo, não há motivos para estresse. Entretanto, as pessoas ao meu redor parecem se incomodar cada vez mais, algumas até se levantam e vão embora. Não consigo deixar de questionar se o alarme as fizera partir ou se o tempo delas naquele lugar simplesmente havia terminado.
Terminado o lanche, preparo-me para ir embora. Levo minha bandeja e meu lixo até a lixeira. Preciso cumprir meu papel de cidadão polido e consciente. Na estante de bandejas, identifico diversas cores, provavelmente pertencentes a estabelecimentos diferentes. Todas estão misturadas: um caos. Coloco a minha em cima de uma bandeja de outra cor, conscientemente visando alimentar o caos. Provavelmente existe uma pessoa na praça de alimentação designada para separar e enviar cada bandeja ao seu fiel destino. E é assim que as coisas acontecem. Quando tudo vai mal, aparece alguém para consertar as coisas, trazer ordem e exterminar o caos. Até que outras pessoas apareçam no dia seguinte, trazendo consigo toda a sua bagunça.
Direciono meus passos sem um destino muito especifico. Não me parecia tão difícil chegar até a saída. Basta caminhar e em algum momento a saída se fará notar. Alguns metros à frente, reconheço uma bela garota. Enamorada de um... tive dificuldades para rotular. Não era um grande amigo, tampouco um simples conhecido. Às vezes os rótulos são insuficientes e mais atrapalham do que ajudam, mas não me demorei na tarefa de encaixá-lo em algum termo.
Minha atenção foi desviada para a pessoa ao lado dela. Um desconhecido. Um rapaz de boa afeição e porte quase atlético. Faço com que ela não me veja enquanto ganho alguns segundos para observar melhor a cena. Sorrisos fáceis, mão com mão e até carícias. Elementos quase suficientes para encaixá-la no adultério, pelo menos na minha mente.
Finjo que não vejo. Finjo que não julgo. Continuo meus passos em direção à saída. O companheiro daquela garota? Jamais ficaria sabendo do acontecido. Não através de mim. Saio do Shopping e me deparo com a escuridão da noite tentando ser combatida pela iluminação urbana. Não havia me dado conta de que passara tanto tempo. O tempo correu rápido, uma surpresa agradável e um bom sinal. Ignoro as luzes da cidade e fito o mar negro que se instalara sobre minha cabeça. Sempre tive a sensação de a noite me oferecer acolhimento, pelo menos um descanso para os meus olhos e para a minha mente. Enquanto caminho em direção ao ponto de ônibus, consigo, com algum esforço, contar algumas estrelas. Elas pareciam tímidas, portanto não era uma noite muito clara.
Já no ônibus e a caminho de casa, percebo o quão exausto estou. Foi um dia cheio, e, apesar de agradável, o passeio urbano me fez repensar uma série de coisas. Dizem que a adolescência é a fase das incertezas, mas lembro de ter sido muito mais firme e convicto naquela época. A estrada até os vinte e tantos anos me trouxe uma série de dúvidas, as quais não faço menção de me livrar. Volto a contemplar o céu, escuro e vazio enquanto o transporte coletivo encurta o caminho até minha casa.
Sinto-me não perdido, mas à deriva, naquela vasta escuridão, com poucas estrelas disponíveis para me guiar. Houve um tempo, contudo, que a escuridão era completa e não havia estrela alguma. A presença desses pequenos e esparsos pontos de luz me fazia otimista. Eu não poderia perder a vontade de navegar enquanto eles estivessem por ali, oferecendo resquícios de prazer, satisfação e alegria. Como uma mudança de rota inesperada, como as paisagens urbanas, como a perspicácia de duas garotas, como um bom sanduiche e batatas fritas, como os casais em uma praça de alimentação, como um alarme ensurdecedor, como o possível adultério de uma pessoa conhecida, como uma surpresa agradável ao cair da noite.
Prestes a chegar em casa, ainda em atividade mental intensa, ao fazer uma breve retrospectiva dei-me conta de quantas coisas já abri mão. De quantas vezes havia me rendido. Eu não sou o Rocky Balboa, entretanto nem tudo é derrota. É a ordem natural das coisas. Uma ultima olhadela para o alto antes de entrar me fez perceber quanto espaço há no céu para novas estrelas. Eu não sou o Rocky Balboa, estou mais para Rustin Cohle². Houve o tempo em que só havia escuridão. E se você quer saber da minha opinião, a luz está ganhando.
¹ Se você precisa de nota de rodapé para saber quem é Rocky Balboa, você é burro!
² Rustin Cohle é um personagem do seriado True Detective dono de uma convicção capaz de te impressionar.

segunda-feira, 17 de março de 2014

CAPÍTULO VIII - CENSURA

Todo o final de semana arrastou-se sem que Caio ousasse fazer qualquer coisa produtiva. Preferia ficar inerte na cama, mudando incessantemente o canal da televisão em busca de qualquer programa que não fosse inteiramente boçal – tarefa deveras difícil - para desperdiçar seu tempo do que reunir forças para sair daquela situação. Às vezes tinha a sensação de ter toda a sua energia drenada por forças místicas desconhecidas, mas era cético demais para levar tais pensamentos muito adiante.
Desde que se encontrara com Gordo e André, a notícia da paternidade de seu amigo não lhe saia da cabeça. O pai não seria ele, a responsabilidade não seria sua, mas ainda assim aquele evento trancafiou-se em seus pensamentos como uma criança amedrontada se agarra ao colo da mãe. Logo se surpreendeu em sua vulnerabilidade, afinal, como pudera um evento tão distante da sua influência e da sua interferência, tão longe do seu controle, afetá-lo tanto?
Não gostava daquela sensação, pois, mesmo em todas as dificuldades que aceitava para si, que bancava de bom grado, ainda conseguia dominá-las bem. Sabia para onde ir e possuía firmeza em seus passos, mas como poderia reagir diante do inesperado e daquilo que não era resultado de suas ações? E, se André, que era muito mais perito em aventuras sexuais do que ele havia sido vítima do descuido ou do acaso, como poderia garantir que o mesmo não aconteceria com ele? Era uma boa charada para uma segunda-feira de manhã.
Encontrou-se pensando na condição de pais e de filhos. Sentiu saudades de seu pai, pois se somavam meses desde o ultimo encontro. Ramalho e Lúcia se separaram há cerca de cinco anos. Os motivos da separação eram diversos, porém há de se dar mais crédito à crise financeira que tiveram que enfrentar. A despeito das dificuldades que enfrentavam atualmente, uma vez foram uma família abastada, de posse de imóveis, carros e um luxo que os colocava acima da média.
Ramalho sempre se destacou em tudo o que fez, com exceção das finanças. Aventurou-se a ser dono do próprio negócio e investiu tudo o que podia, e, quando os negócios começaram a ir mal, investiu também o que não podia. Confiou demasiadamente nos banqueiros e em seus funcionários e o resultado de toda esta trama tornava-se previsível. Lúcia se esforçou ao máximo para salvar os bens da família, e se não fosse pelos seus esforços, hoje não teria sobrado sequer a casa em que vive com Caio, e que viveu com sua irmã antes de ela se casar.
O preço dos esforços de Lúcia, entretanto, custou a boa relação que o casal compartilhou durante quase vinte e cinco anos, pois precisou bater de frente e ir contra as decisões do marido em diversas ocasiões. O casamento findou-se quando Ramalho precisou mudar de estado para poder trabalhar e não deixar sua família ir à ruina, afastando-se de sua esposa e de seus filhos. Caio jamais se esqueceria da coragem de seu pai, e buscaria sempre recompensá-lo por isso.
Decidiu que o visitaria naquele dia ao sair do trabalho, já que não teria de ir à faculdade nas próximas semanas e tinha a noite livre.
Ainda a caminho do trabalho, absorto em seus pensamentos, foi resgatado pela invasão de um senhor que parecia estar entre os cinquenta e sessenta anos de idade e que se sentava ao seu lado. Caio rapidamente analisou o figurão. Trajava vestes simples, mas bem compostas, contrastando com seu cabelo branco, ralo e completamente despenteado e que, com o vento da janela, mais parecia dançar sobre a careca daquele homem enquanto ele acenava em determinada direção:
- Está vendo aquele prédio? Ele foi construído na época da ditadura, com o propósito de ser uma instituição de ensino especializado. Veja só sua arquitetura, dois blocos com um vão entre eles, e possuem janelas somente na parte externa. Foi feito assim com um único propósito: evitar que existisse comunicação e o livre transito dos alunos de classes e cursos diferentes. Dessa forma, dificulta-se o contato entre eles. Um verdadeiro tiro no diálogo, na troca de informação e conhecimento entre eles! As janelas foram projetadas para que até mesmo o contato visual fosse vetado! E ainda existem pessoas que pensam que a censura existia apenas de forma explícita ou através da violência... Havia prazer na voz daquele senhor, como se estivesse revelando aquela verdade pela primeira vez.
Conversaram durante boa parte do trajeto sobre várias coisas e sem que a vivacidade abandonasse a voz daquele sujeito. Caio, então intrigado, perguntou sobre sua profissão.
– Sou cientista e artista, ou artista e cientista, como quiser. Se é que existe diferença entre as duas coisas. É. Não mais penso assim, pois a ciência é uma arte, e a arte, diferente do que parece para muitos ou para a maioria das pessoas, possui um mundo de lógica, mesmo que seja só o seu mundo, o que é mais incrível! Pois bem, durante quase toda a minha vida trabalhei com elementos químicos e seu potencial para tornar a vida da nossa espécie mais saudável e mais confortável. Hoje sou aposentado, e minha arte e ciência do momento se resumem em observar o espaço em que vivemos e desvendar sua história e seu significado. Isso diz muito sobre de onde nós viemos, meu jovem, e te digo essa: Quem sabe de onde veio, pode ver pra onde vai!
Rapidamente foi contagiado pelo carisma, conhecimento e empolgação daquele senhor. No início da conversa, exasperara-se por ter sua meditação perturbada, mas àquela altura percebia que havia muito mais a aprender com o conhecimento e entusiasmo do estranho do que com seus próprios devaneios matutinos. Passado pouco tempo, era Caio quem fazia as perguntas, ávido por tudo aquilo que seu recém-colega pudesse lhe dar e que lhe oferecia de bom grado. Enquanto conversavam, Caio desligou a música que sempre ouvia enquanto viajava, o que era raro. Todas as vezes que havia sido incomodado por algum passageiro, ora era alguém pedindo informação, ora algum religioso descabido tentando convencê-lo de sua doutrina ou até mesmo algum pobre coitado resumindo sua vida em três minutos de frases decoradas e muito mal interpretadas com o objetivo de conquistar uns trocados. Mas aquele senhor nada pedia: apenas doava, como se fosse sua missão, como se estivesse ali, resoluto, propondo-se - com o conhecimento de uma vida - a abrir os olhos daqueles que dormem demasiadamente.
Falaram sobre os mais variados temas, como medicina, política, negócios, lazer e até mesmo sobre ocultismo. Caio logo se deu conta de que pouco sabia daqueles assuntos, mas certamente passou a conhecer mais após despedir-se daquele senhor com a estampa da gratidão evidenciada em seu semblante. Somente após alguns minutos, depois de recapitular tudo o que haviam discutido é que se deu conta de que não haviam se perguntado seus nomes, mas isso não passava de um mero detalhe.
Chegou ao trabalho estampando bom humor tão pouco habitual que seus colegas pareciam contagiados.
- Bom dia Sr. Menezes – acenou o porteiro, com um largo sorriso no rosto. Preparado pra mais uma semana? Caio nunca se acostumou a ser chamado pelo sobrenome, muito menos antecedido por ‘senhor’. Não fazia questão desse tipo de formalidade e não entendia a necessidade dela. Não fazia sentido, não para ele.
- E o seu time, heim Caio? Ontem foi por pouco. Pura sorte! – provocou um companheiro da mesma diretoria.
- Chegou o enrolado! – protestava a secretária da repartição dividida entre a brincadeira e a frustração por tentar convidar Caio para sair com ela e o resto da turma por tantas vezes, sempre sem sucesso.
Sentia-se motivado e bem disposto, e logo começou a planejar e ordenar tudo o que deveria fazer. Somente após tirar o celular do bolso é que se deu conta das três mensagens de texto que havia recebido. Todas de Júlia. Não se deu ao trabalho de ler, pois podia predizer o conteúdo. Recentemente todos os chamados de sua namorada pareciam ter se tornado apenas súplicas por atenção às quais Caio não poderia satisfazer.
Tinha para si a triste sensação de que não era sua personalidade, sua forma, suas ideias e todas as suas características que o tornavam tão atraente para ela, mas apenas sua presença, como se qualquer outro homem pudesse desempenhar o mesmo papel sem maiores dificuldades. Não podia descrever bem o que andava sentindo, mas era um misto de insegurança, fracasso e antecipação da sensação de perda diante do inevitável rompimento entre eles, afinal, estava certo de que era só questão de tempo até que a ordem natural das coisas mostrasse sua magnitude e separasse suas vidas.
Quando se deu conta, todo o seu ânimo e disposição haviam sido exauridos pelos pensamentos taciturnos sobre sua situação com Júlia. Entretanto, não se deixou dobrar e tratou de dar início às suas responsabilidades. Executava tudo com uma eficiência incomum. Fora terminantemente contaminado pela vitalidade do encontro com aquele senhor. Dentro de algumas horas havia realizado o que normalmente teria sido feito em todo o expediente. Desejou sair mais cedo para poder passar mais tempo com Ramalho, entretanto precisava cumprir todo o horário em função da burocracia inconveniente.
Aproveitou o tempo ocioso para telefonar para seu pai a fim de avisá-lo da visita.
- Alô?
- Oi pai, sou eu, Caio. Como andam as coisas?
- Oi filho! Tá tudo certo por aqui. E você, como é que está?
- Tudo certo também, sem muitas novidades – precisou se segurar para não se apressar e contar sobre a possibilidade de um novo emprego.
- Que bom. Você está precisando de alguma coisa? – Ramalho estava sempre disposto a ajudar sua família, mesmo quando ele mesmo passava por dificuldades.
- Não, obrigado pai. Você vai fazer alguma coisa hoje à noite? Estou pensando em passar ai pra gente beber umas cervejas, comer um tira gosto... – Caio adorava as invenções culinárias que seu pai fazia. Tinha sempre algo novo preparado, que ele inventava de ultima hora, da própria cabeça.
- Não, meu filho. Ficarei em casa. Que bom que você vem, vou preparar alguma coisa.
- Combinado. Às oito então?
- Combinados! Até breve, meu filho. Obrigado por ligar.
Caio sentia-se entusiasmado para dar a notícia sobre o novo emprego que ainda não havia conseguido de fato, mas que já sentia ser seu. Poderia finalmente começar sua independência financeira e proporcionar uma vida mais tranquila para seus pais. Era apenas o início da caminhada, mas estava disposto a percorrer toda a estrada.
Em suas fantasias, pegou-se imaginando como poderia mudar a vida de seus pais, caso rapidamente se tornasse bem sucedido. Via o sonho de Ramalho se realizando: uma casa na roça com uma pequena plantação, meia dúzia de galinhas e um botequim simploriamente aconchegante nas proximidades. O silêncio, a paz. Já sua mãe estaria numa casa confortável, toda decorada ao seu estilo, tudo muito ajeitado, limpo e organizado, com alguma diarista sempre disposta a ajuda-la. Não era muito, ele sabia, mas era o que seus pais mais desejavam – e por isso faziam-no desejar também - e que ainda estava bem distante da realidade deles.
Quem mais se encontrava distante da realidade, naquele momento, era ele próprio quando sua atenção se fez voltar para o toque do celular. Era Júlia, e só então percebeu que a havia ignorado desde o alvorecer. Conversaram durante cerca de cinco minutos. Para a surpresa de Caio, não havia tom de desagrado em sua voz.
Foi pior.
Havia melancolia no tom de voz de ambos, como soubessem o que estava a sua espera. Foi até o corredor para pegar um pouco de água no bebedouro e, durante a caminhada, sentiu seu coração pesar. Sentia certa dificuldade em respirar, como se precisasse fazer força para inspirar e que o ar inspirado não era suficiente. Quando tentou inspirar uma grande quantidade de ar, sentiu uma leve fincada no peito, mas não deu muita importância. Aquele incômodo – que não sabia julgar se era físico ou emocional – o acompanharia durante toda a noite.

Revisão, direção, apoio e conselhos na madrugada: Paulo Machado

CAPÍTULO VII - FIM DE TARDE

A bela e ensolarada tarde de sábado estava prestes a anunciar o seu fim, quando, pela quarta ou quinta vez, Ernesto foi convidado por sua esposa a sair do escritório, deixar o trabalho de lado para aproveitar com ela e seus dois netos a valorosa família que construíram juntos. Gostaria de continuar ali e finalizar mais alguns detalhes de sua nova empreitada, contudo, seus longos anos de convivência com sua amada companheira lhe ensinaram que umas poucas vezes ela insistia em requisitar sua presença com doçura, entretanto, quando subia minimamente o tom de voz, era a hora de atendê-la.
Nos últimos meses, mais do que de costume, passava grande parte do seu tempo de descanso trabalhando, o que deixava sua esposa um tanto insatisfeita. Mas Ernesto era obstinado, e, vendo aproximar-se sua aposentadoria, entregava-se ainda mais. Já sentia, em seu íntimo, que o trabalho lhe faria falta. Não somente o trabalho em si e todas as atividades que nele desempenhava, mas também a importante posição que ocupava, além da forma com que as pessoas lhes prestavam atenção, a admiração que seus colegas de trabalho tinham por ele... Tudo isso exercia um papel quase central na sua vida. Desejou que sua filha tivesse seguido seus passos, ocupando uma posição semelhante a dele, de preferência trabalhando junto de si, e, dessa forma, poderia manter-se conectado a tudo que conquistara quando se aposentasse, mesmo que mediado por ela. Porém ela havia escolhido uma vida bem diferente, e mesmo tendo recebido educação de altíssima qualidade, contentava-se em ser mãe e dona de casa.
A crescente sensação de esvaziamento que sofreria quando finalmente sua aposentadoria o alcançasse, ele percebia, fazia crescer também suas afeições por Caio. Não sabia exatamente por que, mas sentia que aquele rapaz poderia dar continuidade ao que ele havia construído e ostentado durante anos. Não desvendara inteiramente os motivos, mas enxergava um brilho diferente nos olhos daquele rapaz. Não o brilho da ambição de quem tudo quer conquistar indiferente dos meios para se chegar à glória. Não, Caio era diferente, enigmático e carregava certo mistério em suas atitudes, o que muito interessava àquele homem que caminhava para a terceira idade e cuja maturidade lhe furtava o prazer de ser surpreendido. Seus sentidos diziam que aquele jovem rapaz tinha um caminho singular pela frente, e que não cobiçando a glória, ainda assim teria seu lugar ao sol, o que despertava tanta curiosidade em Ernesto, talvez pelo fato de que ele próprio jamais poderia ter agido de maneira semelhante.
Enquanto ajudava seu neto mais velho com um quebra-cabeça e ouvia sua neta falar sobre os diversos penteados que havia inventado para sua nova boneca, seus pensamentos se voltavam para seu trabalho e para Caio. Vinha se sobrecarregando de tanto trabalho, e, se realmente desejava tentar promover a carreira daquele rapaz, deveria começar a fazer isso desde já. Sentiu-se determinado. Durante a semana ajeitaria tudo na empresa para que pudessem recebê-lo e telefonaria para ele quando tudo estivesse acertado. Gostaria de acompanha-lo de perto, porém decerto não se meteria demasiadamente, pois queria que Caio se resolvesse por sua própria conta.
E não era só em sua carreira que gostaria de participar. Talvez pudesse apresentá-lo às garotas do setor de comunicação. Certamente eram todas boas moças. Contabilizando rapidamente, lembrou-se de Catarina, Rosana, Amanda, e havia ainda Fernanda, que acabara de ficar solteira. Não, não era uma boa ideia, Caio já se encontrava em um relacionamento e em nada disso ele deveria interferir.
Após tomar sua decisão, naquele mesmo dia Ernesto começava a se sentir um pouco mais leve e, ao mesmo tempo, saudoso. Alguma coisa dizia a ele que ali começava todo o movimento de passar a bola para frente, e que terminaria inevitavelmente com alguém ocupando seu espaço, tomando para si, em determinado momento, todas as suas glórias. Diante do quadro, o melhor que poderia acontecer seria conseguir fazer com que Caio fosse esta pessoa.

Revisão, direção, apoio e conselhos na madrugada: Paulo Machado

sábado, 5 de outubro de 2013

CAPÍTULO VI - FILHOS E PAIS

Inerte, Caio assistia com prazer, à dançarina. Sentia-se perdido em seus longos cabelos, pele amorenada e especialmente no movimentar de seus fartos seios que pareciam ter sido esculpidos pelas mãos abertas de um gigante. Entretanto, com toda a certeza, haviam sido esculpidos não pelas mãos de um gigante perdido, mas de um homem encontrado justamente para aquele propósito. Provavelmente um Doutor.
Prestava genuína atenção em todos os movimentos daquela garota, e, enquanto se encantava, buscava compreender tamanha graciosidade. Não era apenas uma dança, mas uma exibição de um complexo simbolismo que envolvia beleza, malícia e doçura ao mesmo tempo. A habilidade e suavidade daqueles movimentos apresentavam um caráter demasiadamente feminino, fugindo da compreensão dos pobres homens que poderiam, no máximo, saciar-se episodicamente, correndo o risco de se manterem eternamente reféns do espetáculo. Naquele momento a única conclusão que Caio poderia chegar, talvez com certa contribuição do uísque, é que a beleza masculina não pode assemelhar-se à daquelas garotas, e de inúmeras outras.
Foi acordado de seu torpor com a chegada repentina de André. Gordo, que naquele momento possuía fácil sorriso recebeu seu amigo em caloroso abraço, o que o deixou um tanto desconcertado. Indagaram o amigo – que se mostrou resistente - sobre o atraso, e Caio logo pôde perceber que haveria mais uma novidade a ser revelada. André não falava muito, não com palavras, e Caio sabia que insistir para que ele falasse não surtiria muito efeito, e que, logo que se sentisse à vontade, iria revelar, à sua maneira, aquilo que tinha a dizer.
Abusaram da trivialidade durante um bom tempo, quando Gordo não se fez discreto: - André, você vai derreter essa ruiva com esses seus olhos de Águia! Nada mais aqui te prende a atenção? - Não, cara. Porque prenderia? – retrucou. E sem qualquer esforço, se entregaram às gargalhadas. Contudo, pouco tempo depois André ficou sério, e sem fazer muito mistério, disse:
- Vou ser pai.
E nada mais falou.
Como a vida das folhas das árvores que se esvai com a chegada do outono, o sorriso dos três tornaram-se pálidos ao receber a notícia. Fez-se um silêncio duradouro. Ninguém sabia o que dizer, especialmente André. Então Caio começou pelo básico, perguntando-lhe quem era a mãe. Tratava-se de uma garota que André, como de costume, vinha se relacionando não em segredo, mas ainda assim sem o conhecimento dos amigos. Nenhuma outra pessoa além dele próprio a conhecia, e diante disso André se sentiu tolo por não incluir minimamente os amigos naquilo que acontecia em sua vida. Gordo se ocupou de todas as outras perguntas, e em pouco tempo descobriram que André era de fato o único pai possível, que a gravidez já acontecia há cerca de dois meses e que ele não fazia a menor ideia do que fazer dali pra frente. Nunca havia sequer pensado em ser pai. Para André, essa era uma realidade mais do que distante, que talvez sequer fosse acontecer e que agora o alcançara através das inconveniências da vida.
Caio estava atônito. Não havia nada a oferecer como experiência ou consolo a seu amigo, mas sentia que havia sido incumbido de tal tarefa. Avidamente começou a pensar no que faria caso estivesse no lugar de André. Quais seriam suas reações, suas prioridades, seus planos e suas decisões a partir daquele momento. Não demorou muito para perceber que se sentiria tão perdido quanto o amigo e que sua vida necessariamente passaria por grandes mudanças, mas acreditava que encontraria menos dificuldades em tornar-se pai do que André. Por que o André? Por quê? – revoltou-se Caio sem dar a menor pista da revolta em seu semblante.
- Você quer ter esse filho, André? – Perguntou Caio, perscrutando seu alvo.
- Não. Contudo, não tenho coragem de impedir que essa criança venha ao mundo. Não cabe a mim decidir isso, está fora do meu alcance.
Caio conhecia o real significado da resposta evasiva, e poderia apostar que as verdadeiras intenções de seu amigo estavam repletas de compaixão e de amor pela mãe e pela criança que estava por vir. Um amor concebido de uma maneira pouco usual, mas amor de fato. Como em várias outras circunstâncias, o admirou. André poderia ser considerado grosseiro, bruto e até mesmo frio por muitas pessoas, especialmente as que não chegaram a conhecê-lo bem, mas não se poderia negar que ele era um homem de coração quente e nobre, e Caio era um dos que sabia muito bem disso.
Durante a hora que se seguiu, discutiram tudo que precisariam fazer durante os próximos meses. Gordo e Caio pareciam disputar quem falava mais e dava mais sugestões, enquanto André apurava tudo sem se dar conta de que aquilo estava mesmo acontecendo com ele. Discutiram sobre nomes, tanto masculinos quanto femininos – e disso André participou, pois havia interesse em nomes e seus significados, por mais que não fosse muito supersticioso. Caio sugeriu que já começassem a organizar o chá de bebê, e gordo discordou, desejando que fossem realizados dois ou três chás já que teriam bastante tempo até o nascimento. E discutiram entusiasmadamente sobre a qualidade e tamanho das fraldas relativas à idade da criança sem terem o menor conhecimento da causa, e discutiram várias outras coisas das quais nada sabiam, mas que naquele momento só se importavam em negociar e planejar e fazer tudo aquilo que o amigo deixaria para ultima hora, senão para o acaso resolver. Naquele momento André se sentia confortável e animado pelos amigos de uma forma para qual não estava preparado. E naquela altura da noite a notícia já havia se tornado motivo de festa, entusiasmo e risadas, até mesmo de André.
A discussão encontrou seu ápice quando Caio e Gordo entraram num áspero embate, despertando a atenção e curiosidade das pessoas ao redor ao elevarem o tom de voz para decidir o clube de futebol pelo qual a criança seria torcedora, pois cada um torcia pra um dos times rivais da cidade, e, pra piorar a situação, não haveria desempate por parte de André que era completamente indiferente à questão e desejava veementemente que seu filho ou sua filha seguisse o mesmo caminho. Certamente nenhum deles sairia vencedor naquela noite, e nem mesmo até o fim da gestação, e continuariam disputando a torcida de criança através de presentes e blusas dos clubes, além de passeios ao estádio e qualquer outra invenção que lhes desse alguma vantagem sobre o outro. Estava declarada uma que duraria anos.
- Que noite! – Pensou Caio. Dançarinas, um amor platônico e o anúncio de um filho. Caio considerou sua vida um tanto monótona e sem graça diante das emoções vividas pelos amigos, e esses pensamentos obscurecidos, sabia ele, começavam a ganhar espaço quando a bebida já passava do efeito desejado. Era o sinal de que deveria parar por ali. Começou a despedir-se dos amigos enquanto investigava se eles tinham as mesmas intenções. Gordo também planejava partir, mas André tinha outros planos para o fim da noite, os quais Gordo quis saber, mas André nada respondeu, apenas lançou um olhar na direção dos amigos, repousando em Caio, como se procurasse algum tipo de aprovação. Caio acenou positivamente com a cabeça, e como num contrato silencioso, admitiu o amigo em sua caçada pela dançarina ruiva.
- Vamos logo, não vejo a hora de ver a minha cama! – Apressou Gordo.
- Eu vou sozinho, você vai direto pra casa, não está em condições de ficar dando voltas pela cidade.
- Sozinho uma ova! Entra logo, você vai esperar até o amanhecer pra conseguir pegar um ônibus. – Rebateu
- Não, eu já me certifiquei disso, não vai demorar nada até que ele chegue, vá logo – Mentiu Caio, com perícia.
- Que seja. Cabeça dura como sempre. E quando preparava pra entrar no carro, Gordo deu meia volta e perguntou: - Caio... hoje eu lhe falei sobre a Elisa, e, céus! O André nos contou essa incrível novidade, mas você nada disse. O que há de errado? – Nada de errado. Que mal tem nisso? – Desconversou Caio. - Não sei. Você não disse muito sobre você, sobre a Júlia. – respondeu o amigo, fazendo-se claramente desconfiado. – Não há o que dizer. – Caio pôs fim a conversa.
Caio apreciava a solidão em momentos como aquele, com a mente um pouco fora de si e com bastante conteúdo a ser explorado. Encontrava-se em estado de morbidez, acompanhado de pensamentos não muito otimistas ou encorajadores. Sentia-se à margem da importância das coisas e a mercê de toda a má sorte, preparado para continuar por esta trilha enquanto fosse necessário. – Ser pai! Que coisa. – despertou-se de seus pensamentos pouco funcionais.  Ali, no chacoalhar do transporte coletivo, pela primeira vez conseguia com algum sucesso imaginar-se pai. -Como fui tão estúpido de jamais imaginar tal condição? – Censurou a si próprio. Em outros momentos pensou e até mesmo comprou toda a ideia do típico sonho americano, de viver confortavelmente na companhia de uma esposa e um filho ou dois, quiçá três, mas nunca sentiu na pele o que significaria ser pai. Durante grande parte da sua vida se preocupou com o papel de filho, se esforçando para desempenhá-lo da melhor maneira possível, mas nele havia se mantido refém. – Poderia ter sido eu, porque não? E intimidou-se com as furtivas possibilidades da vida. Daquele momento em diante jamais deixaria de se colocar no papel de pai, e com certa frequência. Dentro de pouco tempo passaria a aprovar e gostar da ideia. Gostar bastante.

CAPÍTULO V - UMA OUTRA PRIMEIRA VEZ

O meio do ano se aproximava. Havia passado apenas alguns meses desde que tivera sua ultima conversa com Ernesto, mas naquele momento Caio se sentia alguns anos mais maduro, como se o tempo corresse mais rápido para ele. Às vezes se assustava com a reinvenção que fazia de seus conceitos em tão pouco tempo, e imaginava como estaria ao deixar a adultez jovem e batesse na porta dos quarenta anos de idade. Quando tentava projetar-se no futuro, não conseguia se desvencilhar da referência de seus pais, e também das pessoas que lhe provocavam inspiração mais íntima. Algumas nem mesmo existiam senão em algum filme ou livro, e, de alguma forma, sentia que parte dessas pessoas amadureceria junto com ele. Apesar de reconhecer em si diversas características que acreditava ter herdado de seus pais, especialmente as características paternas, não conseguia avistar um futuro tão similar. Incontáveis foram os momentos em que se percebeu rastreando os defeitos que eles possuíam e erros que haviam cometido, sempre procurando avidamente pela origem e pelos eventos desencadeadores daquilo que julgava ter sido más escolhas de seus pais. Esforçava-se para não tomá-los para si, preferindo cometer seus próprios erros, certo de que eles aconteceriam, em vez de repetir os deles. Apesar disso tinha orgulho das qualidades que havia herdado, mas acreditava que seus passos o guiariam para um lugar bem diferente.
Anoitecia, e quando se preparava para deixar o trabalho, encontrou-se com Ernesto* em um dos corredores. Cumprimentaram-se e trocaram rápidas palavras. Nos últimos três meses, se encontraram apenas algumas vezes. Ernesto, sempre com um sorriso de satisfação no rosto, mantinha relações amistosas, entretanto não mencionou nada sobre a possível oferta de emprego. Caio não se importava, e até chegou a pensar que poderia ser um teste, e, se realmente fosse, passaria por ele sem problema algum. Não nutria muito interesse por situações em que era avaliado, pois precisaria agir de acordo com regras que não eram as dele, sendo obrigado a atuar quando o papel de ator – fosse protagonista ou coadjuvante - não era o que mais lhe apetecia. Preferia estar por detrás das cortinas, observando e fazendo as coisas acontecerem do que se expor à opinião e ao julgamento alheios, que obviamente não lhe eram muito caros.
Ao chegar à universidade foi lembrado pelos colegas sobre a confraternização tradicional que faziam antes das férias chegarem. Caio havia participado de algumas dessas reuniões, onde pôde se divertir bastante, mas naquele dia não se sentia muito disposto. Preferia estar com os amigos mais próximos ou desfrutar da harmonia do seu lar, onde possuía toda a autonomia do mundo para descansar. Com um pouco de insistência, convenceram-no a participar, afinal, não parecia tão má ideia tomar algumas cervejas com pessoas ainda tão jovens e alegres. Aos seus olhos, muito mais jovens do que ele, apesar do disparate.
Após algumas rodadas, contrariando suas expectativas, o lugar e as pessoas já não tinham a mesma graça quanto da ultima vez que se reuniram. Caio reparava na conversa dos subgrupos que se formavam, e mesmo se esforçando para participar e se interessar, simplesmente não conseguia. Sentia-se em outro momento da vida, e os assuntos acabavam o deixando entediado. Nem mesmo os olhares de uma ou duas garotas que haviam o percebido era suficiente para convencê-lo de permanecer ali por muito tempo. Sentia-se preso ali, àquela realidade quando ansiava estar alguns passos a frente na sua estrada particular. Naquele momento, sentia que sua vida assemelhava-se a um pesado navio, navegando em águas severas.  Toda a tripulação trabalhava sob o chicote dos seus chefes para aumentar a velocidade enquanto uma pesada âncora invisível frustrava o trabalho de todos. Ah, se eu pudesse ter com ela! – protestou inutilmente contra a âncora invisível do navio inexistente. 
O local estava cheio, havia fumaça de cigarro em abundância e as pessoas esbarravam nele a todo o momento. Sem muito custo foi vencido pelo desprazer da circunstância, e na tentativa de salvar a noite ligou para Gordo. Se seu amigo estivesse pelas redondezas eles poderiam se encontrar, e seria uma satisfação poder passar algum tempo com ele. Acertou em sua suposição e, minutos após atender a ligação, Gordo chegou até o bar onde Caio estava. Pediu uma cerveja e então avaliaram as possibilidades da noite.
Gordo, mostrando-se mais útil que um guia turístico de ofício, apresentou diversas opções de programas e lugares dos quais Caio não poderia ter concebido sequer metade. Por fim, decidiram ir a uma casa noturna para adultos, o que para Caio representava uma novidade, pois nunca antes havia frequentado casas de strip-tease e tudo mais que poderia acontecer lá dentro. A sensação de ser a primeira vez lhe trouxe o frio na barriga que devolveu o status que a sexta-feira merecia.
Antes de entrar no carro, Caio olhou demoradamente para Gordo, como se subitamente constatasse a falta de alguma coisa, e perguntou: - A mesa estava cheia de garotas bonitas, inclusive aquela que você havia comentado... – e foi atravessado antes que pudesse terminar a frase.  - Tem uma mulher... A conheci em uma festa da empresa. Eu só consigo pensar nela, você sabe como é – explicou-se Gordo. Caio teria respondido que não, não sabia como era, mas preferiu concordar, solidarizando-se com a situação do amigo. Pelo seu tom de voz, percebeu que ainda não estavam juntos, mas que o amigo provavelmente não conseguia fazer outra coisa senão elaborar estratégias para conseguir o que desejava. E você ainda não me disse nada, como pôde? – Praguejou Caio. - Foi tudo muito rápido, eu te conto tudo quando chegarmos. Era incomum ver o amigo tão calmo na presença de tantas garotas bonitas, sem se aproximar de nenhuma delas. Gordo parecia realmente interessado nessa nova garota, e Caio percebeu que em algum momento do futuro essa seria uma daquelas mulheres que conquistaria algum lugar além das boas lembranças de seu amigo.
Gordo havia escolhido um local libertino para se abrir e falar sobre sua mais recente paixão, o que deixava Caio razoavelmente perturbado. Não sabia exatamente o porquê, mas falar sobre coisas que lhe pareciam nobres em um lugar rodeado de strippers parecia um tanto inadequado. Ao constatar que isso não representava problema algum para Gordo, sentiu-se apequenado e apressado em seu julgamento. No fim das contas, sabia que não era melhor que as pessoas que encontraria lá dentro, fossem clientes, dançarinas, seguranças ou barmen. Silenciosamente agradeceu ao amigo pela lição do dia e ligou para André, convidando-o para se juntar a eles. - Ótima ideia, faz tempo que não vejo esse dinossauro! – aprovou Gordo, como se realmente fizesse muito mais de um mês que eles haviam se encontrado. Eram vizinhos desde sempre e cresceram juntos, e foi através de Gordo que Caio pôde conhecer André. Desde alguns anos atrás foram raras as vezes em que os três não saíam juntos, mas ultimamente não conseguiam sincronizar o horário de lazer e nem mesmo a preferência pelos programas. Mas dessa vez Caio acertou em cheio, pois André aceitou o convite sem resistência alguma. Mais um acontecimento atípico acabara de acontecer naquela noite.
Logo que entrou na casa, Caio procurou reconhecer tudo que fosse incomum, qualquer coisa não fizesse parte de uma casa de diversão habitual. Analisou minuciosamente tudo que pôde, desde a disposição e estilo das mesas e cadeiras, a distância entre o bar e o palco, a localização dos seguranças, o comportamento dos funcionários, as luminárias e a intensidade da luz, volume do som. Conjecturou tudo que poderia acontecer naquele lugar. Era um hábito, quase um vício tentar identificar quais acontecimentos eram possíveis e prováveis e quais não aconteceriam. Fazia isso sempre que alguma situação representasse novidade para ele, e, na tentativa de justificar-se para si próprio, considerava um mecanismo de sobrevivência, afinal, poderia antecipar as possibilidades, sentindo-se mais preparado e seguro para enfrentar alguma eventualidade. Além disso, através de tais observações, poderia reconhecer os padrões do local e rapidamente se adequar. Não que isso fosse realmente necessário, mas para ele era a forma mais fácil de sentir a vontade em lugares novos.
Mergulhado em suas observações, teve uma leve surpresa ao voltar à superfície e ver uma das dançarinas praticamente nua, trajando apenas uma calcinha do tipo fio-dental. Entretanto, as únicas coisas que considerou realmente incomum foram a presença das mulheres seminuas e da predominância de bebidas mais finas, como uísque, na mesa dos clientes. – Boa pedida! Nada de cervejas demais e ebriedade de menos. Hoje é um bom dia para tomar algo mais forte – pensou Caio, e dentro de poucos minutos estava na companhia de sua primeira dose.
Como de costume, Caio deu partida na conversa assim que se acomodaram na cadeira. Por sugestão sua, escolheram uma das mesas que ficava entre o palco e o bar, sendo caminho quase obrigatório para os garçons, e, dessa forma, estariam mais bem assessorados. Caio não poupou o amigo de suas impressões iniciais do local. Não lhe era mais tão comum ter o prazer de fazer alguma coisa pela primeira vez, e sentia-se excitado por isso, especialmente por ser uma casa de strip-tease.
Logo a conversa aprofundou-se, adquirindo maior caráter filosófico do que o desejado. Caio parecia palestrar diante de uma multidão de um amigo só. Sentia-se diferente naquela noite. A sensação de se sentir mais velho de espírito do que seus colegas da faculdade, a aflição de julgar-se estagnado profissionalmente e a ansiedade – por mais que resistisse a assumir – em dar seguimento à proposta feita por Ernesto o consumia. Tudo o que queria naquela etapa da vida era ter menos preocupações e mais conforto, especialmente se pudesse oferecê-lo aos seus pais. Não tinha muito contato com seu pai, e nas poucas vezes que o visitava, tinha a sensação de que ele se fazia forte e bem, mas que vivia uma vida muito mais pesarosa do que procurava mostrar. Deixou-se falar até se esvaziar, mas nada teve como resposta de Gordo, que desde então se emudecera. Caio não frustrou-se, porém, afinal no fundo não esperava que fosse diferente, pois os préstimos do amigo apontavam para outros assuntos, mais banais, na avaliação de muitos, mas não na de Caio.
Rendeu-se ao trivial, e no cessar da conversa banal, Gordo vagarosamente começava a se abrir, ainda olhando fixamente para a dançarina, mas sem muito interesse, como quem encontrara a desculpa perfeita para evadir-se do olho-a-olho.
- A garota da qual eu falava mais cedo...
- Sim, a garota. – Caio deixou que o amigo continuasse.
- Ela não é daqui. Eu a conheci em uma festa de integração da empresa. Os funcionários das filiais foram convidados, muitos vieram. Inclusive ela.
- Não era essa a festa que você havia convidado aquela menina, como ela se chama mesmo? Regina.
- Renata. Sim, eu a havia convidado. Ela colocou tantas dificuldades em ir à festa e por fim não foi. Depois disso não nos encontramos mais, não daria em nada mesmo. Está resolvido. – Disse Gordo, sem remorso.
- É. Eu não tinha ido muito com a cara dela mesmo. Cheia de não me toques, não tem nada a ver com você! Mas agora me conte. O que fez essa nova garota pra te deixar assim?
- Assim como? Está tão evidente? Pois bem... Acredite, eu estava tranquilo, me divertindo sem excessos, até que resolvi ir dançar. Foi quando a vi. Ela estava sentada numa cadeira próxima da pista de dança. Estava muito quieta, achei estranho e até injusto. E, você me conhecendo bem, sabe o que sucedeu...
- Se eu errar, a próxima rodada é por minha conta: você foi até ela, perguntou por que estava tão quieta, se havia acontecido alguma coisa. Ela logo respondeu que vinha de outra cidade e não conhecia muita gente, e por isso sentia-se tímida. Você se ofereceu a pegar uma bebida para os dois, enquanto, no caminho, pensava na melhor maneira de animá-la e conquistar sua admiração. A estratégia funcionou, mas por ser um ambiente rodeado de pessoas com quem ela mantém relações profissionais, vocês não avançaram muito. Agora ela voltou pra cidade dela e deixou seus encantos contigo, e o que te consome é tentar saber o que fazer pra resolver o problema da distância. – Supôs Caio, propositalmente transbordando imponência.
- Juro que depois de todos esses anos, às vezes você ainda me assusta. Mas não foi perfeito em sua análise, pois faltou um elemento: ela tem um namorado. Sentia-se mal, eu percebi que alguma coisa nesse namoro não ia bem. Depois de algum tempo de conversas e risadas ela desabafou comigo. Recentemente descobriu que havia sido traída. O namorado ainda não sabe que ela sabe... Quando percebi que isso poderia ser uma brecha pra ela dar o troco na mesma moeda e que eu poderia tirar vantagem, acreditei que ficaríamos juntos naquela noite. E foi aí que eu percebi...
- Percebeu o que?
- Que eu já estava gostando dela. Como é possível, Caio? Em tão pouco tempo?
Caio demorou-se demasiadamente tentando responder a pergunta do amigo, e como quem se livra de uma arapuca, fez outra pergunta:
- O que te fez perceber que estava gostando dela? – Perguntou, mostrando-se interessado pela resposta.
- Nessas circunstâncias, eu tentaria fazer acontecer alguma coisa naquela noite. Mas não quis. Eu queria, sim, mas não daquele jeito, naquele momento. Então logo notei que havia mais carinho do que qualquer outra coisa. Carinho e vontade de estar a sós com ela, em outro momento, não naquele.
- E o que mais vocês fizeram no resto da noite?
- Não fiz mais nada, só companhia. Tentei desviar o assunto, porém ela voltou a desabafar. Disse-me exatamente o que suspeitei, e um pouco mais: que poderia devolver-lhe na mesma moeda e fazer com que ele soubesse através de terceiros, como havia acontecido com ela. Mas só a ideia de fazer algo desse tipo lhe causava náuseas. Assumiu que desejou se vingar dele, mas não de uma maneira tão baixa.
- E por ela ter se justificado fez com que você acreditasse que o sentimento que você começava a desenvolver por ela fosse recíproco.
- Sim! E desde então... Tudo o que eu penso é em que pé está essa situação, se ela voltará a ser solteira ou não. Eu estaria disposto a me transferir pra cidade dela, caso nós começássemos a nos ver. Que loucura é essa que se instalou em mim? – Gordo demonstrou angústia.
- ‘Um guerreiro se faz com um quarto de coragem e três quartos de loucura’*², diria um sábio montador de dragão. Espero que você consiga domar o seu!
- Dragão, Caio? Dragão? Ah vá...
Após finalizarem aquela rodada de bebida em meio às risadas sinceras, Gordo notou a sobrancelha franzida de Caio e indagou: - O que é que te acomete, amigo? Caio fez mistério. Antes de responder, chamou o garçom e pediu a gentileza de servi-los mais uma dose. Após longa espera, finalmente quebrou o silêncio: - Você não me disse o nome da sua garota, Gordo. Não me disse! – Que raios o parta, não em dois, mas em mil, homem! Achei que fosse alguma coisa importante.  Alguma dessas suas suposições malucas que você faz sobre as pessoas, sem sequer conhecê-las, e normalmente acerta. Que susto! – esbravejou Gordo. Caio, não contente com a peça que pregara no amigo, importunou-o ainda mais. – Nome, Gordo. Eu quero o nome! – Elisa, Caio. Tome seu nome. Satisfeito? Vamos beber, pelo amor de Deus!

* Ernesto agora é o novo nome do personagem anteriormente chamado de ‘Feliciano’. Quando dei o nome original ao personagem o nome do pastor Marco Feliciano ainda não era onipresente na mídia, e para evitar associações errôneas do personagem com o pastor, julguei melhor alterar o nome.

*² Brom, em Eragon.

quinta-feira, 7 de março de 2013

CAPÍTULO IV - FILHOS DA NOITE: O CAMPO


Ouviram outra explosão. Mais uma granada que havia explodido a poucos metros do pelotão. Haviam coberto quilômetros sem se dar ao luxo do descanso, mas agora estavam próximos demais do território inimigo e precisavam rever a estratégia para continuar prosseguindo sem que tivessem mais perdas, e então pararam atrás de uma barricada durante alguns segundos para recuperar o fôlego.
Em meio a uma sinfonia de balas perdidas e achadas, explosões e gritos dos soldados, Caio olhava fixamente na direção de um de seus companheiros. Perscrutava a mente daquele sujeito, visualizando seus pensamentos materializados no centro da tempestade bélica. Pôde entender, sem muito esforço, que aquele sujeito não estava preparado para morrer, e por isso sentia correr em suas veias um medo desesperador, desvendado pela percepção súbita que tivera acerca da fragilidade da vida. Há minutos atrás, perderam o primeiro e terceiro sargento. Agora ele percebia que poderia ter sido ele o alvo da escolha nefasta de seu Deus, e mesmo não estando preparado, morreria satisfeito. Subiria para os eternos campos floridos e reluzentes e seria reconhecido por ter cumprido o papel de um anjo armado, designado a manter a desordem da sua espécie, e isso faria com que sua sanidade fosse mantida por mais algum tempo.
Caio teria ficado horas ali, desnudando as verdades e motivações daquele soldado se ele não tivesse sido capaz de perceber sua invasiva presença e rechaçá-lo com um olhar repleto de fúria que o fez questionar, por um instante, se ainda estavam lutando no mesmo lado. Um terceiro soldado que até então os observava com reprovação, gritou: - Pensamentos não ganham guerra e muito menos salvam alguém, tem que socar! Caio olhou imediatamente em sua direção e rapidamente o reconheceu. Tratava-se de André, um rapaz robusto e expressivo. Eles haviam se conhecido há cerca de dez anos, e desde então a amizade entre eles vinha se mostrando distinta. Compartilhavam pensamentos e motivações que certamente soariam ininteligíveis à maioria das pessoas. O modo de se relacionar entre eles não seguia padrão algum, pelo contrário, a melhor forma que encontraram de se fazer entender, ao passar dos anos, se dava através de diálogos ásperos e palavras ácidas o bastante para corroer as defesas mais bem edificadas. Tinham consciência de que um poderia conhecer mais do outro do que seria conveniente, e isso fazia com que sempre mantivessem o respeito um pelo outro. Já haviam passado por situações ainda mais delicadas do que a qual se encontravam, e por isso Caio se sentiu mais confiante em saírem vitoriosos naquela batalha.
Não havia entendido muito bem o significado das palavras de seu amigo, mas confiava nelas, e, mesmo que representassem perigo, estava disposto a assumir os riscos. Sabia que teria de liderar e dar esperança àqueles soldados, por mais que não guardasse muita para si mesmo. Naquela situação, poder contar com André seria de enorme ajuda. Olhou para ele, estudando sua expressão durante alguns segundos, e então perguntou em voz baixa, inaudível aos outros soldados: - Direita ou esquerda? - Pra onde estiver chovendo menos - respondeu o companheiro. Baseado na resposta que obtivera, planejou a ação do grupo. A ordem era que todos perdessem o medo, pois assim as balas não poderiam acertá-los. Deveriam andar em linha reta com a proteção da coragem até que pudessem mirar de forma precisa nos soldados inimigos, para finalmente derrotá-los.
Executavam o plano com perícia. Ouviam-se tiros de várias direções e podiam ver as balas passando a centímetros deles, mas nenhuma os acertava. Nem mesmo as explosões das granadas pareciam surtir algum efeito, como se tudo não passasse de efeitos especiais de cinema, incapazes de oferecer algum perigo ao pelotão. Quando chegaram à posição de ataque, desferiram rajadas fatais. Caio observava, desde o início da caminhada, um soldado inimigo cessar fogo logo após os primeiros disparos. Quando estavam perto de conquistar a vitória, ordenou que não matassem aquele soldado. Alguns dos soldados aliados o indagaram sobre sua decisão, outros esbravejaram, questionando inclusive a autoridade que havia assumido subitamente, já que os dois soldados de patentes superiores agora estavam mortos. Caio foi sucinto e transparente ao deixar claro que não fazia questão alguma de estar no comando, mas uma vez que lá se encontrava, teriam de concordar com seus motivos, pelo menos até estarem totalmente a salvos, e depois ele poderia explicar a todos o porquê de suas decisões.
Podia sentir, de alguma forma, as intenções de cada soldado daquele pelotão. Consultou André sobre tudo que havia acontecido desde que assumira o controle do grupo, mas ele apenas deu de ombros. O motivo de maior discordância entre Caio e os soldados era o fato de não fazer do inimigo capturado, um prisioneiro de guerra. Além de não amarrar ou prender o inimigo de alguma forma, Caio exigiu que não lhe confiscassem nem mesmo suas armas e acessórios. Ele parecia confiar e dar importância àquele sujeito, entretanto não fez nenhuma pergunta, nem mesmo se interessou em saber seu nome. Enquanto caminhavam, o inimigo capturado, que andava livremente entre eles, se aproximou de André e perguntou: - Quem é ele? Ou melhor, o que é ele? André examinou aquele rapaz, enquanto parecia procurar pela melhor resposta, e alguns instantes depois, respondeu: - Seja lá o que for, ele é o aspecto da justiça, e não existe justiça em assassinatos - O inimigo aceitou a resposta, e mesmo sem entendê-la muito bem, não quis continuar indagando, pois sentia-se intimidado. De qualquer forma, sentia-se grato por estar vivo.
Finalmente chegaram à base militar. Ela se instalava no meio da primeira casa que Caio havia morado desde que sua família se mudou para a cidade grande. A casa estava muito limpa, como sua mãe costumava sempre deixar, e logo se entristeceu ao imaginar que os soldados, em minutos, iriam desfazer o trabalho de limpeza e organização que ela havia levado horas para fazer. Foi no quintal conferir se não havia espiões, e pôde avistar a piscina de plástico que ele e seus irmãos costumavam usar quando eram crianças. Teve vontade de se livrar da farda e entrar nela, mas seria muito infantil para um militar, especialmente agora que estava no comando e precisava dar exemplo aos seus subordinados. Parou durante um momento para admirar aquele lugar. Era bom estar de volta, depois de tantos anos longe dali, ainda sentia que aquele lugar pertencia a ele, como se fosse um importante elemento daquilo que havia se tornado.
Contemplava aquele lugar com imensa tranquilidade quando sentiu a mira a laser da arma apontando para ele, lentamente subindo em suas costas, até que parou, ligeiramente à esquerda. Caio sorriu desdenhoso e pensou “o idiota não sabe que meu coração fica em outro lugar... de qualquer forma, eu não tenho medo mesmo, isso não pode me ferir”. Após alguns segundos, virou-se para encarar o atirador, com o sorriso ainda em seu rosto. Todos os outros soldados acompanhavam a cena sem se exaltarem. O atirador era um dos soldados do pelotão, um dos únicos que até então não havia se pronunciado. Caio sabia que ele pressionaria o gatilho em poucos instantes, e apenas esperou pelo fato. Quando finalmente disparou e a bala saiu da arma, sem barulho algum, Caio acordou assustado. Suava muito e seu travesseiro se encontrava completamente molhado. Sua respiração estava ofegante e sentia uma pontada de dor no peito, na região do coração. Pulou da cama e foi tomar seu banho.

Revisão: Paulo Machado